CRER PARA VER
A Doação
Por JOAQUIM FIDALGO
Público, Quarta-feira, 3 de Julho de 2002
Não se sabe o seu nome. Sabe-se a sua história, adivinha-se a sua tragédia, admira-se o seu gesto derradeiro - aquele que a fez, sempre sem um nome mas com um corpo, chegar às páginas dos jornais. Com um corpo, com as muitas partes do corpo.
Dezanove anos apenas. Imigrante na Andaluzia espanhola, aquela mesma de onde nos têm chegado tantos contos de vida difícil de imigrantes. Dois filhos, apesar dos 19 anos: um no país natal, o Equador, outro em Espanha, pequenino, um ano só.
Imigrante clandestina. Sem papéis. Nem documentos de identificação, nem registo no consulado equatoriano. Nada. Como se não existisse.
E, no entanto, existia. Existiu até aos 19 anos quando, ali mesmo, em Sevilha, resolveu tomar pastilhas para deixar de existir. Vá-se lá saber porquê, não devia ser vida fácil ou de grandes janelas para diante. Apesar dos 19 anos. Terá sido também por eles que, pouco depois de tomar as pastilhas, pediu ajuda. Mas já era demasiado tarde: chegou ao hospital em estado de morte cerebral, nada mais havia a fazer.
Esta é, como se calcula, uma situação em que os médicos gostariam de poder dispor dos órgãos da jovem falecida para os sempre tão carentes transplantes. Não sei se o sugeriram à família, ou se foi a família que o sugeriu, o certo é que os pais doaram ao hospital todos os órgãos da sua filha.
Mas ela não tinha papéis. E, sem papéis, era impossível observar as rigorosas tramitações legais que uma doação de órgãos implica.
E não é que lá se arranjaram logo os papéis?... Ela, que não os tinha tido em vida, teve-os rapidamente depois de morta. Simples: um fax para a aldeia lá nas Américas, outro fax de resposta, umas burocracias rápidas porque nestes casos uma hora vale, e lá teve então os seus papéis, a sua prova de identidade, decerto a sua autorização de residência - para poder oferecer ao país de acolhimento, vivos, os restos da vida que decidira acabar.
Deixou de ser clandestina. Deixou de ser alguém que "não existia". Passou a existir só quando faleceu, e só porque os seus órgãos iam ser (como foram) a salvação de outros. Olha se não se resolveu tudo numa urgência como esta, com um corpo tão jovem e saudável como este, disponível em forma de coração, de pulmões, de fígado, de rins, de pâncreas, de tudo o que ela doou e logo se transplantou com êxito!... Rezam as crónicas que foi a extracção multiorgânica mais importante realizada na Andaluzia, nove horas de
trabalho médico... Muitas vidas agradecem.
Dizia o jornalista do "El País" que, nos últimos cinco anos, 16 pessoas doaram todos os seus órgãos na Andaluzia. E que eram, esses 16, oriundos de nove países diferentes. Ou seja, imigrantes na maior parte. Algo que a própria administração sanitária confirma: "Praticamente todos os emigrantes, procedam do país que procedam, doam os seus órgãos sem problemas de maior."
Mortos, acabam por se oferecer inteiros à terra que os recebeu mas que, tantas vezes, os sugou em vida - e, porventura, nem lhes reconheceu a existência. Nem sequer num papel.
salamandrine 10:45